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02/04/20

A geração imune ao mimimi

Do seu jeito, o presidente Jair Bolsonaro tocou num ponto interessante, a capacidade do brasileiro pobre em não pegar doenças que outros pegariam em ambientes insalubres. Por exemplo, pisa em esgoto na rua todo dia mas não morre disso. Para mim é clara a relação entre se expor e ganhar imunidade.

Minha geração jogava bola na lama e brincava na chuva toda hora. No fim de uma partida não existiam brancos nem negros, todo mundo era marrom, dos cabelos aos pés descalços. Escorregar nas poças era tão parte da diversão quanto fazer um gol e chegar em casa como "monstrinho de lama"... não tinha preço.

Minha galera só lavava as mãos quando a sujeira incomodava e comia com a mão suja na rua. Era uma geração que andava descalça na terra, que comia fruta tirada do pé sem lavar, que chegava em casa com a roupa imunda. Imagine uma mãe atual vendo tudo isso... "Meu Deus, Enzo, voce vai ficar doente!". Enzo? Pois é, até os nomes são frescos.

Com toda a sujeira e a lama, a imunidade de minha geração é melhor que a da nova, cheia de "mimimi". Criança de hoje pega gripe ou pneumonia se ficar um minuto na chuva, sofre todo tipo de doença se brincar na lama ou andar descalça na terra, e tem alergia a tudo. O corpo não tem defesa porque nunca teve contato com a natureza crua.

Veja o caso das vacinas, por exemplo. Elas fazem o corpo "conhecer" um determinado virus e aprender como resistir a ele quando encontrar no futuro. Quem já pegou o coronavirus, por exemplo, fica imune a ele para o resto da vida. O corpo já sabe o que ele é e o que precisa fazer para se livrar da ameaça.

Talvez os médicos devam receitar aos pais dar mais liberdade aos filhos para se expor à natureza. Recomendar pelo menos um baba debaixo de chuva por mês, um banho de lama a cada 15 dias, brincar na terra todo fim de semana, rolar na grama, abraçar bichos, se expor.

A vida cercada de cuidados tem deixado as novas gerações mais fracas, mais doentes e mais amedrontadas. Minha geração andava de bicicleta e moto sem capacete, não sabia o que era cinto de segurança, viajava no banco da frente - ajoelhado para poder ver melhor pela janela. Tomava banho de mangueira no quintal.

A gente se ralava toda hora, se furava em prego e aguentava o antigo Merthiolate, que ardia como o inferno. Quem nunca quebrava um braço ou uma perna era introvertido e não saía para brincar. Ninguém tinha medo de subir em árvore ou muro. Eu adorava subir no telhado lá de casa, para desespero de minha mãe.

A gente nadava em rio, pulava na piscina do trampolim mais alto do Grapiuna Tenis Clube, subia em caixa d'água. A gente chamava o colega de rolha de poço, jockey de barata, torrão, branco azedo, zarolho, gaso. Ninguém achava que era bullying, ninguém cresceu atormentado por isso. Simplesmente respondia de volta...

A gente descia a ladeira em carrinho de roleimã para se estabacar no fim da ladeira. Atirava mamona com estilingue uns nos outros. Doía, mas ninguém morreu disso nem foi parar na delegacia por "agressão". A gente fazia piada com japonês, bicha, negro, português, fanho, cotó e todo mundo sabia que não era opinião, mas apenas piada.

Todo mundo brincava de cauboi, guerra, polícia e bandido, e não conheço ninguém que tenha virado um adulto violento por causa disso. A gente se pendurava de ponta-cabeça, subia em árvores, apanhava de chinelo ou de cinta. A bunda, as pernas, os braços ficavam com marcas vermelhas e ninguém cresceu complexado por causa disso. Hoje...

Rico ou pobre, tanto fazia, tudo virava brinquedo. Vela de carro era canhão, embalagem de Q-Boa virava barco, submarino e tanque de guerra. Lata de óleo se transformava em carro, pedaço de madeira era pistola ou espingarda, galho se tornava uma espada mortal. Hoje, se não usar pilha, não serve.

Sou de uma geração que comia e bebia coisas sem saber o que tinha dentro, apenas que era gostoso: Grapete, Ki-suco, pirulito Zorro, Dadinho, Groselha Milani; chicletes Mini, Ping Pong e Ploc; suco de feira, quebra-queixo, picolé feito com água suspeita, um troço que chamavam de "bala de atum" mas era de banana.

Bebia refrigerante por um buraco feito na tampinha com um prego, "fumava" cigarro de chocolate Pan, quase morri engolindo bala Soft, bebi Crush, curti balas azedinhas (vinham numa lata oval), mandiopã frito no óleo, chiclete azedinho-doce Adams... Ninguém nunca questionou se tinha colesterol, carboidrato ou açúcar demais.

Eu nunca peguei uma gripe e minha última doença foi caxumba, aos 8 anos. Tudo bem, pode ser sorte ou genética, mas a maioria dos meus amigos da época também goza de uma saúde excelente. Não pode ser coincidência.

O coronavirus tem atingido mais o pessoal de 30 a 39 anos e matado mais os que estão acima de 65 anos. No meio sobra minha geração, de 50 a 60 anos, que teve a felicidade de curtir uma infância livre. De regras, de patrulhamento, de cuidados excessivos, de frescura. Talvez a gente passe a pandemia vendo o virus só pela janela.

Às mães, um conselho: mais lama, menos mimimi.

Posted by at 7:20 PM
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